Redondas formas de sensação




                                                  


                                                                      Foto by Jean-Baptiste Mondino

À guisa de uma de uma declaração de gosto, esta rapariga é, sem dúvida, a pianista de maior glamour e beleza dentro da música clássica. No entanto, paga um certo preço pelo reconhecimento público. Ao virtuosismo não se lhe perdoa tudo. Isto é, parece que não é do agrado de algumas figuras gradas da crítica, o facto de quebrar os códigos de vestuário para mostrar o quanto é feminina. Por conseguinte, há quem considere a quebra do dress code, um conflito ideológico, tendo por base a ideia de que, na música clássica, o intérprete serve a música. Como se sabe, o solista interpreta um trabalho composto por um ou outro. Desaparece em favor da música, por assim dizer.  Mas, como alegam alguns, fazer-se destacar com vestuário provocante é desonrar os compositores que interpreta? O intérprete é um animal de circo ou uma perfeita máquina de execução? Ou, não deverá antes, para brilhar, colocar toda a sua alma (e os seus trapinhos) na música? Se, Alfred Brendel, Guiomar Novais, Clara Haskil, Martha Argerich, Vladimir Horowitz, Glenn Gould , só para referir alguns pianistas, não tivessem colocado a sua personalidade na música, a História não os teria escolhido.  Aprecio-lhe o gosto de musa para se vestir. Mas falar de mulheres, é falar da neblina que as cobre e nos recobre. E nesse tecido nebuloso acabamos por nos “enrolar como eras”, como dizia Camões. Adoro vê-la tocar; a teatralidade muito expressiva, lírica ou dramática; a posição hirta, mesmo que os músculos lhe doam do exercício, reforçam-lhe a gravidade; aqueles braços descrevendo variações de curvas, fendendo o ar com os cabelos esvoaçantes, enquanto miríades de pequenas gotas de suor lhe vão brilhando o rosto, deixam um longo rasto de imaginação desesperada atrás de si.




Handel, o homem que ouvia os anjos

Max Weber afirmou que a maneira de pensar do ocidente na modernidade ficou marcada por aquilo a que chamou “desencantamento do mundo”. Isto é, o homem deixou de explicar a realidade a partir da sua experiencia mítica ou religiosa. Com a modernidade passou-se a procurar explicações racionais para a realidade. O “desencantamento do mundo é aquele em que não há espaço para aquilo que a ciência não possa explicar, mensurar e classificar. Por isso, ficam de fora do “conhecimento científico”: a reflexão filosófico-religiosa, a representação artístico-literária e artístico-musical. No período vivido por Handel, quer dizer, no período Barroco, a concepção do mundo, é ainda a do “encantamento do mundo”, não existia por isso, o actual impulso para medir e catalogar o mundo, mas de compreendê-lo a partir de princípios não estritamente racionais ou conceptuais como os que encontramos nas ciências socias ou nas ciências ditas duras. Com efeito, ouvir esta transcrição para piano do Minuet de Handel é uma experiência de poesias, de sentidos e sensações. A clareza da linha melódica, a sobriedade do discurso ou do fraseado pianístico, são as qualidades mais destacadas da peça - que é, meditativa e intimista - sem que seja angustiada ou austera. É uma composição brilhante devido à constante procura de beleza. Filtrada dos ruídos do mundo, depressa a música se transforma numa oportunidade de projectar sonhos. De paz e afago. Representa um considerável desafio interpretativo para a intérprete: ao olhar para Khatia Buniatishvili, somos levados a crer que a música é o seu único deus. Piano e música retomam os seus plenos direitos encantados.
                                       




Sonhos de Amor

Liebestraume é a palavra em alemão para “Sonhos de Amor”. A peça pertence a um conjunto de três obras para piano solo da autoria de Franz Liszt. Originalmente os três “Sonhos de Amor” foram concebidos como Lieder, isto é, como arranjos musicais para poemas que descrevem três formas diferentes de amor: “O amor exaltado” (o amor religioso); “O amor erótico” e; por fim, “Amar o mais que puder!” (a que corresponde o amor maduro e incondicional). Em todas estas formas de amor, imaginamos personagens, ora atraídas pela paixão, ora torturadas pela sensualidade. Khatia Buniatishvili ao tocar isto, irradia um poder tão sedutor que promete nada menos que abismos de volúpia. Não há aqui uma técnica pianística, mas uma cena amorosa. 





“Zeus impôs-nos um destino infeliz para que a imortalidade nos cante”.
- Ilíada, Canto VI

Schubert é personificação do artista amaldiçoado. Morreu aos 31 anos e foi condenado à procura incessante de uma felicidade inacessível. Contudo, soube melhor como nenhum outro músico expressar a melancolia e o desespero que surgem desde os primeiros acordes de algumas das suas obras para piano. A condição precária que experimentou em certos períodos da sua vida impediu-o de ter o seu próprio piano, por isso, costumava escrever rapidamente pequenas peças de música que não conseguia sequer fazer a revisão antes de serem publicadas. Como é caso da “Serenata”, escrita sob a inspiração do momento. Mas que inspiração e confiança absoluta é esta que não lança um olhar crítico para a sua obra? Que autor, “criador”, não o faz? Até o próprio “Criador”, segundo o texto bíblico, sentiu a necessidade de deitar um olhar sobre a Criação, para concluir se o que fizera era bom. Parece que aquele que produz a realidade originária e original sofre uma espécie de cegueira necessária à criação. É este regresso à realidade originária que se pode chamar poesia. A transcrição da “Serenata” de Schubert para piano, foi feita por Liszt, a quem cognominou justamente “o compositor mais poético de sempre. A Serenata é construída sob o signo da melancolia, numa outra região do ser: aquela melancolia que reencontra, ilumina e restitui outras melancolias de inefável e musical densidade.
Uma melodia simples, mas encantadora, da primeira à última nota e, no entanto, inegavelmente perfeita.


 Ah, os nenúfares!

Apesar da respeitabilidade das obras Sergei Rachmaninov, a sua linguagem não é capaz de me suscitar aquelas emulações estéticas grandiosas como Beethoven, Brahms, Schubert ou Schumann. Com efeito, Igor Stravinsky teceu comentários pouco elogiosos a este Concerto para Piano e Orquestra nº 2, ao afirmar que não passava de “uma grandiosa música de filme”. Mas Impressiona-me o segundo andamento, o Adagio sostenuto, que parece uma mistura entre o coral religioso e a dança. E depois, este diálogo entre a solista Khatia Buniatishvili, a flauta e o clarinete cria a impressão de imobilidade de uma estranha beleza. Faz-me esquecer o sarro dos dias e remete-me a prosa para algum perfume de verão. E lá vou pensando em reflexos e brilhos aquáticos, em delicadas flores abertas somente enquanto à luz do sol. Ou então, numa escala gigantesca, vou imaginando as infinitesimais variações da luz de um céu estrelado numa noite quente.  


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