A sonata do
consentimento à Vida
A glória
literária pode encontrar os seus grandes símbolos nos nomes de Marcel Proust,
Hermann Broch, Robert Musil, Franz Kafka, Thomas Mann e James Joyce. Um dos
grandes fascínios que Ulisses desperta, é porque se trata cabalmente de um
texto simbólico-labiríntico.
O excerto
que aqui se apresenta, só encontra paralelo na música. Só em Beethoven
encontrarmos a energia deste paroxismo narrativo na Sonata Appassionata. A
ambição de Joyce não foi pouca; se disse que gostaria de fazer com que tudo
entrasse neste romance; Beethoven definiu a Appassionata como um consentimento
à vida.
Neste excerto, Joyce começa
por soltar uma massa narrativa ligada à mãe prana: a água. Símbolo e origem da
vida, da fecundidade, da fertilidade, da transformação, da purificação e da
força. Findas as errâncias, seja a do Odisseu homérico ou joyciano, é a este
símbolo que ambos retornam.
À semelhança
de Beethoven na Appassionta, Joyce abre as comportas do texto de uma forma
torrencial; em cascata, sucedem-se as repetições, trilos e trémulos num ritmo
obsessivo. O desenvolvimento, proporciona as modulações, transformações e as
combinações mais variadas; a escrita, regurgita de ideias, a tal ponto que a
estrutura formal do texto é posta em causa e se abeira da desintegração. O
virtuosismo é abundantemente solicitado, a tensão é crescente, pois a cada nova
ideia vai acrescentando mais elementos de complexidade. Se em Beethoven, o
primeiro andamento da Appassionta se conclui nas fronteiras do silêncio; em
Joyce, o fluxo “sonoro” desagua na acalmia de um charco. Em Ulisses, não há
qualquer momento privilegiado; todos os factos e elementos se equivalem e
merecem ser descritos, desde uma pequena chaleira de água ao fogão até ao mais
vasto oceano.
«O que é
Bloom admirava na água, amante da água, extrator de água, portador de água, uma
vez regressado ao fogão?
A sua universalidade:
a sua igualdade democrática e a constância à sua natureza procurando o seu
próprio nível: a sua vastidão no oceano de projecção de Mercator: a sua
profundidade de 8000 braças: a sua inquietação das suas ondas e partículas
superficiais visitando em turnos todos os pontos do litoral: a independência
das suas unidades: a variabilidade dos estados do mar: a sua hidrostática
quiescência nas calmarias: a sua turgidez hidrocinética nas marés mortas e
vivas: o seu apaziguamento após a devastação: a sua esterilidade nos calotes
circumpolares, ártico e antártico: a sua importância climática e comercial: a
sua preponderância de 3 para 1 sobre a terra seca do globo: a sua indisputável
hegemonia estendendo-se em léguas quadradas sobre todas as regiões abaixo do
subequatorial trópico de Capricórnio: a multisecular estabilidade da sua bacia
original: o seu lúteofulvo: a sua capacidade em dissolver e manter em solução
todas as substâncias solúveis, incluindo milhões de toneladas dos mais
preciosos metais: a sua lenta erosão de penínsulas e ilhas, a sua persistente
formação de ilhas homotéticas, penínsulas e promontórios com tendência a
baixar: os seus depósitos aluviais: o seu peso e volume e densidade: a sua
imperturbabilidade em lagoas e pequenos lagos nas montanhas: a sua gradação de
cores nas zonas tórridas, temperada e frígida: as suas ramificações veiculares
em correntes continentais contidas em lagos e confluentes rios a fluir para o
oceano com as suas correntes tributárias e trans-oceânicas, corrente do Golfo,
cursos equatoriais norte e sul: a sua violência em maremotos, trombas de água,
poços artesianos, erupções, torrentes, remoinhos, turbilhões, enchentes, vagas
de fundo, divisões de águas, geysers, cataratas, torvelinhos, voragens,
inundações, dilúvios, aguaceiros: a sua vasta curva horizontal: o seu segredo
nos mananciais e na humidade latente, revelado por instrumentos rabdomânticos
ou higrométricos e exemplificado pelo poço no paredão de Ashtown Gate,
saturação do ar, destilado do orvalho: a simplicidade da sua composição, duas
partes constituídas de hidrogénio com uma parte constituída de oxigénio: as
suas virtudes curativas: a sua capacidade de flutuar no Mar Morto: a sua
perseverante penetrabilidade em riachos, canais, diques insuficientes, vazamentos
de bordo: as suas propriedades para limpar, apagar a sede e o fogo, alimentar a
vegetação: a sua infalibilidade como paradigma e modelo ideal: as suas
metamorfoses como vapor, névoa, nuvem, chuva, saraiva, neve, granizo: a sua
força em hidrantes rígidos: a sua variedade de formas em lagos e baías e golfos
e angras e canais e lagoas e atóis e arquipélagos e estreitos e fiordes e
bacias e estuários e braços de mar: a sua solidez em glaciares. Icebergs,
bancos de gelo: a sua docilidade em fazer funcionar azenhas hidráulicas,
turbinas, dínamos, centrais eléctricas, lavandarias, fábricas de curtumes,
fábricas de fiação: a sua utilidade em canais, rios, se navegáveis, em docas
flutuantes e secas: a sua potencialidade derivada do domínio das marés ou
cursos de água precipitando-se de um para outro nível: a sua fauna e a flora
submarinas (anacústica; fotofóbica) numericamente, se não literalmente, os
habitantes do globo: a sua ubiquidade em constituir 90% do corpo humano: a
nocividade dos seus eflúvios em pântanos lacustres, charcos pestilenciais,
águas emurchecidas, poças estagnadas sob a lua em quarto minguante.»
James Joyce,
Ulisses. Tradução João Palma- Ferreira, Editora Livros do Brasil, 2005.
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