A audácia da distorção



O progresso na Arte não está mecanicamente ligado aos progressos na sociedade. Com efeito, o progresso não vai sendo percebido no campo político, moral e religioso, mas no campo técnico. Em que reside então o progresso na Arte? O artista das cavernas sabe desenhar um bisonte de um modo genial. A mão do artista da Renascença não é mais soberana que a do seu antepassado. Exprime no entanto outra coisa. E mais riqueza na sua obra. O progresso é uma qualificação crescente da qualidade, dixit Claude Roy. Isto é: O homem não diz melhor de século para século: diz mais. Pode acontecer que o seu talento não acompanhe as riquezas que quer exprimir, mas acabará por se recompor e dominar a matéria de forma mais vasta.

                                                                                        Estúdio de Francis Bacon. Foto: Perry Ogden



Wikipédicamente falando, a propósito de “Três estudos para figuras na base de uma crucificação” (1944), de Francis Bacon, o crítico John Russell disse que “havia uma pintura em Inglaterra antes dos” Três Estudos”, e outra depois deles, “e ninguém... podia confundir as duas”
                                              
                                             Três estudos para figuras na base de uma crucificação”(1944), Francis Bacon

Resguardado o seu prestígio, a condição de Francis Bacon para pintar, é triunfar nas trevas. A partir daqui, produz algumas das imagens mais emblemáticas da humanidade ferida e traumatizada do pós-guerra. Os seus quadros ajudaram a construir a visão contemporânea do mundo. Isto é: deixamos de ter a razão como referência e garantia da compreensão do mundo, assistimos à dissolução dos esquemas fechados e totalizantes, sejam políticos, estéticos ou morais. E, como faz notar Adorno e Horkeimer, como “deixam de haver argumentos absolutamente convincentes contra os juízos falsos (as fake news), não é possível curar a percepção distorcida em que eles surgem. Por conseguinte, como a verdade implica (pólos) opostos de imaginação, pode sempre ocorrer que, para as pessoas cuja imaginação foi lesada, a verdade seja algo de fantástico e a sua ilusão, a verdade.” Daí o apelo de Francis Bacon - a realidade é iludida e desfigurada; as suas figuras são violentamente distorcidas -  são raras as composições onde surja mais do que uma figura na mesma tela, isto é, não há sociabilidade, mas almas isoladas e atormentadas por dilemas existenciais. Audaz e revolucionário, Francis Bacon forjou um estilo que o tornou num dos mais reconhecidos expoentes da arte figurativa.

Em Bacon toda a figura humana se lhe constrange. O seu trabalho é de uma complexidade e sofisticação extrema. Sabia melhor que ninguém utilizar a figura humana projectando-a como testemunho do erro do nosso olhar (ético?). O que disse Picasso de um nariz, diríamos de um rosto: para lhe  prestarmos efectivamente atenção, seria necessário pintá-lo de esguelha. Se o Cubismo nos mostra o “outro lado”; Bacon quer mostrar-nos Outro no seu movimento, no seu limite, na sua estranheza, por isso, desfigura os modelos. 
                                                     
             Édipo e a Esfinge, Jean August-Dominique Ingres (1808)


Era um artista nitidamente à parte, perdido num sonho no qual tinha dificuldade em sair, embriagado pelos temas perturbados e dolorosos. Vem esta etiqueta a propósito da recente exposição no CCB, Quel Amour!?, onde está incluído Oedipus Rex de1983 (Rei Édipo), uma das suas mais importantes obras, composição inspirada em Édipo e a Esfinge, de Ingres.

                                                         Oedipus Rex (1983), Francis Bacon


Enquanto em Ingres, Édipo é a figura dominante, em Bacon, essa figura está descentrada, tornada  “num perdedor ”, escreve David Sylvester no catálogo da colecção Berardo. Édipo aparece ferido, sugerindo um caminho errático que levará ao interdito incestuoso. Sobre um "fundo negro" delimitado pelos painéis monocromáticos cor-de-rosa, as Fúrias manchadas de sangue anunciam esse inexorável destino. Acresce ainda que, na teoria psicanalítica, a sexualidade humana, nas suas diversas formas, funda-se no drama Édipo. Se do desfecho deste drama permanece algum resto de gozo, o ponto nodal reside na nossa posição diante do interdito ao desejo incestuoso. N’ “As estruturas elementares do parentesco”, Lévi-Strauss postulou que há apenas duas condições universalmente comuns a qualquer sociedade, indistintamente da época ou da localização geográfica: a linguagem e o tabu do incesto. A posição final diante do interdito, completada a travessia do drama de Édipo, definirá o destino da sexualidade de cada um.










Comentários

Mensagens populares deste blogue

A Reprodução Proibida

MORRER AO TEU LADO

A linguagem da transcendência