A ciência e o estranho estado das coisas
Em tempos pandémicos, parece que apenas uma pequena parte da
nossa cultura, no sentido filosófico do termo, é exegese. Note-se a este
propósito, “o pânico frio” que invadiu
a casa dos escritores que ficaram sem literatura (como refere o jornal Público
de 10 de abril de 20 20). Com efeito, “estamos
a viver num espaço público homogéneo” salienta o António Guerreiro. De facto, tudo converge para um afunilamento monotemático daquilo que dá que pensar sobre
aquilo que pode haver que pensar. Tudo o que anteriormente era susceptível de
se tornar “objecto” da hermenêutica: a literatura, a música, a forma artística,
foram relegados para os confins da existência, e só a técnica e a ciência
importam.
Caso o Paraíso existisse, desejava Vergílio Ferreira nele
entrar a escrever. Assim sucedeu com Hannah Arendt. A distinção entre realidade
e a aparência sempre foi a essência e o perfume da filosofia – e, as últimas
investigações de Arendt moveram-se nesse sentido. Uma pensadora que, tendo as
suas principais fontes de inspiração confessas em Platão, Santo Agostinho,
Kant, Kierkegaard, Nietzsche, Heidegger, não é redutível às fontes que a
inspiraram. Realmente, encontra-se numa dimensão de reflexão própria. É uma
ínfima parte dessa obra sobre epistemologia que passo a apresentar.
Como é do mais elementar senso comum, o erro é o preço que
pagamos pela verdade, e a ilusão é o preço que pagamos pelas aparências. O
mundo quotidiano do senso comum no qual todos nos movemos - ao qual não escapa
o cientista - conhece o erro assim como a ilusão. Nenhuma eliminação de erros ou dissipação das
ilusões pode chegar a uma região para lá da aparência. Porquê? Hannah Arendt responde de forma enfática:
“Porque quando uma ilusão se dissipa, quando
uma aparência se dissolve, é sempre em proveito de uma nova aparência que
assume de novo por sua conta a função ontológica da primeira… A desilusão é a
perda de uma evidência apenas porque é a aquisição de outra evidência…”
Como Arendt refere, que a ciência moderna, na sua incansável
e risível demanda pela verdade, venha alguma vez a ser capaz de resolver esta
intrincada situação é, no mínimo, duvidoso, quanto mais não seja porque o
próprio cientista pertence ao mundo das aparências embora a sua perspectiva
sobre o mundo possa diferir da perspectiva do senso comum.
Historicamente falando, esta “irremovível dúvida”, a que Hannah Arendt se refere, tem sido
inerente ao projecto inteiro logo desde o seu começo com a ascensão da ciência
na era moderna. Quer dizer, a noção setecentista de um “progresso ilimitado”, tornou-se o mais acalentado dogma de todos nós
num mundo cientificamente orientado, mas não parece ter a intenção de resolver
esta intrincada situação: apesar de esperarmos progredir mais e mais, não me
parece que alguém alguma vez, tenha acreditado num objectivo final e Absoluto
de Verdade.
O “pensamento científico”, o que é que
isso queira dizer, desempenha um papel importante no seu empreendimento, dou
isso de barato - mas é um papel de um meio para um fim - o fim é determinado
por uma decisão do que vale a pena saber - e essa decisão não é científica.
A sede de conhecimento nunca abandonou inteiramente o mundo
das aparências e das ilusões no qual todos nós nos movemos; se os cientistas se
alheiam deste mundo para “pensar” (?), é apenas para encontrar novas e melhores
abordagens, chamadas “métodos”, em
direcção ao conhecimento.
Aqui chegados, a ciência não é mais que do que um
prolongamento refinado de raciocínio do senso comum, no qual as ilusões dos
sentidos são constantemente dissipadas à medida que os erros da ciência são
corrigidos. Isto é: qualquer perda de ilusão por parte da ciência – é sempre a
perda de uma evidência por um ganho de uma nova evidência. Nada, nem mesmo a
própria compreensão que a ciência tem do empreendimento científico, garante que
a nova evidência se mostrará mais fiável que a anterior evidência.
A consequência de todo este desenvolvimento é de extrema
importância. A própria noção de verdade,
que de certo modo sobreviveu a tantas reviravoltas ao longo da nossa história
intelectual, sofreu uma mudança decisiva, e foi dividida numa série de
verdades, cada uma a reclamar para si uma validade apesar de a continuação
implicar qualquer coisa como meramente transitório. Um estranho estado de
coisas.
Vamos colocar
a hipótese, de que se poderia dar o caso que uma determinada
área da ciência alcançasse acidentalmente o seu objectivo. Ora, isso nada faria
parar os cientistas que trabalhassem nesse campo, porque continuariam a ser
arrastados para lá do seu objectivo pelo mero impulso da ilusão do progresso
ilimitado, ou seja, uma espécie de ilusão imanente da actividade científica.
Esta
modificação - "da verdade em simples
veracidade" - resulta do facto do cientista continuar limitado pelo senso
comum por meio do qual encontramos a nossa orientação no mundo das aparências. Arendt
conclui por isso, que é o raciocínio do "barato" senso comum que se aventura no reino da
especulação nas teorias dos cientistas, e a principal fraqueza do senso comum
neste campo tem sido que lhe faltam as salvaguardas inerentes ao puro pensar, a
saber: a capacidade crítica do pensar.
Como Max Weber
fez notar, pusemos a ciência na posição de ter de assegurar a racionalidade da
ordem social. Mas como diria uma amiga minha, a racionalidade quando é
encostada às cordas, é cheia de aporias. A mais bela ilustração em que a razão
gera mitos, foi feita nos Caprichos de
Goya, onde pudemos ler a seguinte inscrição: “El sueño da la razón produce monstruos”.
A fetichização
da ciência só contribui para projectarmos o nosso desejo e a nossa
representação da ordem social para um tipo de especialista que tira a
capacidade de decisão sobre a vida que devíamos levar.
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