A ciência e o estranho estado das coisas



                                                         
O sonho prova que a razão produz monstros, Francisco de Goya (1746-1828)

   
Em tempos pandémicos, parece que apenas uma pequena parte da nossa cultura, no sentido filosófico do termo, é exegese. Note-se a este propósito, “o pânico frio” que invadiu a casa dos escritores que ficaram sem literatura (como refere o jornal Público de 10 de abril de 20 20). Com efeito, “estamos a viver num espaço público homogéneo” salienta o António Guerreiro. De facto, tudo converge para um afunilamento monotemático daquilo que dá que pensar sobre aquilo que pode haver que pensar. Tudo o que anteriormente era susceptível de se tornar “objecto” da hermenêutica: a literatura, a música, a forma artística, foram relegados para os confins da existência, e só a técnica e a ciência importam.

Caso o Paraíso existisse, desejava Vergílio Ferreira nele entrar a escrever. Assim sucedeu com Hannah Arendt. A distinção entre realidade e a aparência sempre foi a essência e o perfume da filosofia – e, as últimas investigações de Arendt moveram-se nesse sentido. Uma pensadora que, tendo as suas principais fontes de inspiração confessas em Platão, Santo Agostinho, Kant, Kierkegaard, Nietzsche, Heidegger, não é redutível às fontes que a inspiraram. Realmente, encontra-se numa dimensão de reflexão própria. É uma ínfima parte dessa obra sobre epistemologia que passo a apresentar.

Como é do mais elementar senso comum, o erro é o preço que pagamos pela verdade, e a ilusão é o preço que pagamos pelas aparências. O mundo quotidiano do senso comum no qual todos nos movemos - ao qual não escapa o cientista - conhece o erro assim como a ilusão.  Nenhuma eliminação de erros ou dissipação das ilusões pode chegar a uma região para lá da aparência. Porquê? Hannah Arendt responde de forma enfática:

Porque quando uma ilusão se dissipa, quando uma aparência se dissolve, é sempre em proveito de uma nova aparência que assume de novo por sua conta a função ontológica da primeira… A desilusão é a perda de uma evidência apenas porque é a aquisição de outra evidência…”

Como Arendt refere, que a ciência moderna, na sua incansável e risível demanda pela verdade, venha alguma vez a ser capaz de resolver esta intrincada situação é, no mínimo, duvidoso, quanto mais não seja porque o próprio cientista pertence ao mundo das aparências embora a sua perspectiva sobre o mundo possa diferir da perspectiva do senso comum.


Historicamente falando, esta “irremovível dúvida”, a que Hannah Arendt se refere, tem sido inerente ao projecto inteiro logo desde o seu começo com a ascensão da ciência na era moderna. Quer dizer, a noção setecentista de um “progresso ilimitado”, tornou-se o mais acalentado dogma de todos nós num mundo cientificamente orientado, mas não parece ter a intenção de resolver esta intrincada situação: apesar de esperarmos progredir mais e mais, não me parece que alguém alguma vez, tenha acreditado num objectivo final e Absoluto de Verdade.

O “pensamento científico”, o que é que isso queira dizer, desempenha um papel importante no seu empreendimento, dou isso de barato - mas é um papel de um meio para um fim - o fim é determinado por uma decisão do que vale a pena saber - e essa decisão não é científica.

A sede de conhecimento nunca abandonou inteiramente o mundo das aparências e das ilusões no qual todos nós nos movemos; se os cientistas se alheiam deste mundo para “pensar” (?), é apenas para encontrar novas e melhores abordagens, chamadas “métodos”, em direcção ao conhecimento.

Aqui chegados, a ciência não é mais que do que um prolongamento refinado de raciocínio do senso comum, no qual as ilusões dos sentidos são constantemente dissipadas à medida que os erros da ciência são corrigidos. Isto é: qualquer perda de ilusão por parte da ciência – é sempre a perda de uma evidência por um ganho de uma nova evidência. Nada, nem mesmo a própria compreensão que a ciência tem do empreendimento científico, garante que a nova evidência se mostrará mais fiável que a anterior evidência.

A consequência de todo este desenvolvimento é de extrema importância.  A própria noção de verdade, que de certo modo sobreviveu a tantas reviravoltas ao longo da nossa história intelectual, sofreu uma mudança decisiva, e foi dividida numa série de verdades, cada uma a reclamar para si uma validade apesar de a continuação implicar qualquer coisa como meramente transitório. Um estranho estado de coisas.

Vamos colocar a hipótese,  de  que se poderia dar o caso que uma determinada área da ciência alcançasse acidentalmente o seu objectivo. Ora, isso nada faria parar os cientistas que trabalhassem nesse campo, porque continuariam a ser arrastados para lá do seu objectivo pelo mero impulso da ilusão do progresso ilimitado, ou seja, uma espécie de ilusão imanente da actividade científica.

Esta modificação - "da verdade em simples veracidade" - resulta do facto do cientista continuar limitado pelo senso comum por meio do qual encontramos a nossa orientação no mundo das aparências. Arendt conclui por isso, que é o raciocínio do "barato" senso comum que se aventura no reino da especulação nas teorias dos cientistas, e a principal fraqueza do senso comum neste campo tem sido que lhe faltam as salvaguardas inerentes ao puro pensar, a saber: a capacidade crítica do pensar.

Como Max Weber fez notar, pusemos a ciência na posição de ter de assegurar a racionalidade da ordem social. Mas como diria uma amiga minha, a racionalidade quando é encostada às cordas, é cheia de aporias. A mais bela ilustração em que a razão gera mitos, foi feita  nos Caprichos de Goya, onde pudemos ler a seguinte inscrição: “El sueño da la razón produce monstruos”.

A fetichização da ciência só contribui para projectarmos o nosso desejo e a nossa representação da ordem social para um tipo de especialista que tira a capacidade de decisão sobre a vida que devíamos levar.

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